“Não podemos nos enganar por achar que este é um conflito entre índios e o agro. Não é isso. Essa é uma questão que poderá impactar toda a sociedade brasileira”

“Não podemos nos enganar por achar que este é um conflito entre índios e o agro. Não é isso. Essa é uma questão que poderá impactar toda a sociedade brasileira”

Entrevista com o advogado Alisson de Bom de Souza, procurador-geral do Estado de Santa Catarina

Nesta quarta-feira, 1º/9, o Supremo Tribunal Federal (STF) dá continuidade ao julgamento sobre a ampliação ou não de demarcações de terras indígenas em Santa Catarina. A ação foi iniciada pelo Estado, em 2009, para reivindicar a reintegração de posse de uma área de proteção ambiental, a Reserva Estadual do Sassafrás, que está sob os cuidados do Instituto de Meio Ambiente do Estado.

No entanto, o que for decidido nesse caso valerá para todas as disputas de terras entre índios e não-índios. Se o veredicto for favorável a ampliação das terras, poderá levar à insegurança jurídica em todo o País, criando conflitos e batalhas judiciais que não terão mais fim.

O AgroSaber entrevistou o advogado Alisson de Bom de Souza, procurador-geral do Estado de Santa Catarina, para entender por que todas as propriedades do País estarão em risco. Confira.

AgroSaber – Como nasceu esta disputa de terras?

Alisson de Bom de Souza – Essa disputa nasceu a partir de uma terra indígena já demarcada, a Ibirama-Laklãno. Ela tem cerca de 14 mil hectares e houve um processo da Fundação Nacional do Índio (Funai), nos anos 2000, que fez a revisão dos limites dessa terra indígena passando de 14 mil para 37 mil hectares. Quando houve essa revisão de limites, os indígenas alegaram que a reserva biológica passou a ser terra indígena. No entanto, essa revisão não foi homologada pelo Presidente da República, tanto lá nos anos 2000 como até hoje.

AgroSaber – Quais foram os procedimentos do governo de Santa Catarina?

Souza – Houve uma ação judicial movida pelo governo de Santa Catarina, através do Instituto de Meio Ambiente. Na realidade a ação se trata de uma reintegração de posse porque houve a invasão da reserva biológica, um espaço ambiental protegido no município de Itaiópolis em Santa Catarina. Essa reintegração de posse foi ajuizada e julgada procedente no juízo federal de primeiro grau. Houve recursos da Funai e da União perante o Tribunal Regional Federal da 4ª região, no entanto, foi mantida a reintegração de posse. Depois disso, a Funai fez um recurso extraordinário para o STF. A esse recurso extraordinário de relatoria do ministro do STF Edson Fachin, foi atribuída a classificação de repercussão geral.

AgroSaber – O que significa a classificação de repercussão geral nesse processo?

Souza – Todo recurso extraordinário que vai ao STF, para ser admitido, tem de ter repercussão geral. Quando o Supremo reconhece um caso concreto de repercussão geral todos os demais processos ficam aguardando a sua decisão. Com isso, todos os demais casos semelhantes serão julgados conforme aquele caso concreto. Isso significa que esse caso vai fixar uma tese (uma jurisprudência) a respeito da demarcação de terras indígenas no País. Então esse julgamento, que começou em 25 de agosto, representa uma vinculação a todos os demais casos existentes no Brasil e que discutem disputas territoriais a respeito de terras indígenas.

AgroSaber – Por que esse aumento da demarcação de terras indígenas é inconstitucional?

Souza – Porque a Constituição é bem clara quando diz que ficam reconhecidos os direitos originários dos índios quanto às terras que eles tradicionalmente ocupam. Esse verbo ‘ocupam’ tem um significado. Quer dizer que os índios ocupam naquela na data de entrada em vigor da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Essa tem sido a interpretação do STF e esperamos que se mantenha. Este é o que chamamos de marco temporal.

AgroSaber – Toda demarcação de terras tem de seguir esse marco temporal?

Souza – Sim, pois qualquer processo administrativo da Funai tem de comprovar que, na época que entrou em vigor a Constituição, havia indígenas em determinado local. O próprio parágrafo 1º do artigo 231 da Constituição exige inclusive requisitos para se reconhecer a tradicionalidade da ocupação. Esse é um elemento importante. Não bastam que existam alguns índios no local, tem de haver também a chamada tradicionalidade da ocupação. Isso se comprova conforme os requisitos constitucionais como a questão da habitação permanente, de o local ser indispensável para a subsistência e economia indígena, além de ser fundamental para suas tradições e cultura.

AgroSaber – Quais impactos ele pode provocar se a decisão for favorável à ampliação da demarcação de terras?

Souza – Isso trará um cenário de insegurança jurídica por todo o País. E a Constituição Federal existe para promover justamente a segurança jurídica, além de trazer estabilidade para todas as relações jurídicas e para a sociedade em geral. Por isso o marco temporal é fundamental.

AgroSaber – O que diz a legislação sobre revisão de demarcações?

Souza – Pelo que ficou definido no julgamento em 2009 da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, não é possível revisar as demarcações de terras indígenas já existentes e demarcadas. Esse é um elemento fundamental na discussão porque, senão, os processos jamais vão acabar, o que provocaria um processo permanente de instabilidade.

AgroSaber – Quais os efeitos do aumento dessas áreas na prática?

Souza – Se formos analisar com profundidade existe também o conflito federativo porque o que que acaba acontecendo é que a União e o governo federal, por meio da Funai e por meio de um processo administrativo unilateral, determinam que um dado local ou porção de terras seja terra indígena. As terras indígenas, pela Constituição Federal, são bens da União. Isso significa que, de uma hora para outra, uma porção de terra que pertence a um território estadual, municipal ou privado, passa ser um bem da União, com afetação para a posse indígena. Isso cria um conflito social, retirando proprietários particulares de suas terras e que ali já vivem de 30, 40 ou 50 anos. Vai provocar um conflito econômico, por exemplo, o de agricultores que ocupam aquelas porções de terra criando insegurança para a própria produção rural da região.

AgroSaber – O impacto é maior no agro?

Souza – Não. Não podemos nos enganar por achar que este é um conflito entre índios e o agro. Não é isso. Essa é uma questão que poderá impactar toda a sociedade brasileira. Acho que nós todos somos pertencentes a sociedade brasileira índios e não índios. Os índios merecem proteção, mas o que não pode ocorrer, e é o que nós temos visto em muitos casos, é um abuso da interpretação constitucional demarcando terras que não são indígenas e isso é o que a gente tem de evitar. Temos de trabalhar para harmonizar essa questão. Por isso precisamos trazer a segurança jurídica para essa discussão. Esse elemento é essencial.

O AgroSaber continua com a missão de levar aos leitores informação sobre os reflexos das decisões sobre ampliação e novas demarcações de terras indígenas no País.