“O Brasil conseguiu substituir 46% da gasolina por etanol. Nenhum país no mundo faz isso”
Entrevista com Evandro Gussi, diretor presidente da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica)
O AgroSaber inaugura sua nova seção de entrevistas: as Páginas Verdes. A proposta é trazer uma grande personalidade do agro brasileiro para apresentar seu ponto de vista e ajudar a esclarecer os negócios, a política e, como é de fato, a vida no campo à toda população brasileira.
Quem inaugura essa seção é o advogado paulista Evandro Herrera Bertone Gussi, 39 anos. Natural de Presidente Prudente (SP), Gussi é formado em Direito pela UniToledo, de Presidente Prudente. É também mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Teoria do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Ele também foi deputado federal, de 2014 a 2018.
No agro, Gussi lidera, desde fevereiro de 2019, a maior entidade representação do setor sucroenergético brasileiro, a União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica). A entidade reúne as principais usinas de processamento de cana do País, responsável por cerca de 90% de todo açúcar e etanol produzido no País.
Apesar de o setor sentir as graves consequências da pandemia e da queda de preços do petróleo, as perspectivas para o futuro são boas, segundo Gussi. Confira.
AgroSaber – Quais os desafios para o setor sucroenergético pós-pandemia?
Evandro Gussi – O primeiro desafio o que é atravessar esse momento extremamente difícil, porque a pandemia implicou na retração de demanda por etanol. O problema foi agravado a preços que já vinham em depressão, fruto de movimentos antiliberais e antimercadológicos do Oriente Médio e da Rússia. Mas tem uma coisa importante, pois o setor se desenha como um dos mais necessários na retomada da economia.
AgroSaber – Por quê?
Gussi – Porque estamos vivendo uma das maiores crises do século. No entanto, nenhum setor, exceto o sucroenergético, relativizou os compromissos ambientais por conta desse cenário trágico que a gente vive. O que todos têm direito é que o mundo pós-pandemia seja ainda mais exigente sobre o ponto de vista ambiental e de sustentabilidade. As restrições de mobilidade e a necessidade de isolamento social mostrou a uma parte do mundo o que é viver com qualidade do ar. Isso aqui no Brasil já se tornou trivial nas últimas décadas por conta da enorme participação do etanol na nossa matriz energética de mobilidade. Posso dizer que existem poucas soluções no mundo tão eficientes como é o etanol.
AgroSaber – Por que o etanol passa a ser tão importante?
Gussi – Porque ele é uma solução consolidada no Brasil. Temos uma larga experiência de mais de 40 anos. Atualmente há cerca de 60 países que já tratam sobre o tema do etanol, misturado à gasolina. O brasileiro ter este biocombustível puro em seus veículos flex. O etanol proporciona um ar mais puro. Tomo como exemplo, a capital da Índia, Nova Délhi. Ela é uma cidade em que a média de micrograma de material particulado por metro cúbico de ar é altamente nocivo à saúde humana. Essa média é da ordem de quase 200 microgramas por metro cúbico de ar, quando a Organização Mundial de Saúde recomenda no máximo 25 microgramas por metro cúbico de ar. Já a grande São Paulo, capital e região metropolitana, com 20 milhões de habitantes, possui uma média de 16 microgramas por metro cúbico de ar. É quase dez vezes menor do que Nova Délhi. Grande parte disso é que nós usamos 27% de etanol na gasolina. Portanto, o etanol é uma solução simples, barata e que pode ser adotada no curto prazo com implemento de uma produção agroindustrial absolutamente sustentável. O nosso setor é um dos que possui o maior índice de reflorestamento de vegetação nativa.
AgroSaber – É através desse poder o etanol que a Unica deu início ao programa Renovabio. Como ele funciona?
Gussi – O Renovabio é uma política nacional para os biocombustíveis como o etanol. Ele tem duas ações importantes. A primeira é ambiental com a criação de uma plataforma para realizar a descarbonização, pois o etanol é visto como uma estratégia de sequestro de gás carbônico. A segunda é econômica, pois o Renovabio gerará um mercado de crédito de carbono com o chamado CBIO.
AgroSaber – O que o CBIO?
Gussi – O CBIO é um título financeiro comercializado na bolsa de valor e é emitido a cada vez que uma usina de cana-de-açúcar reduz a emissão de uma tonelada de gás carbônico na atmosfera. Nosso trabalho, não só como setor, mas como País, será levar isso ao mundo para que mais empresas de outros países adentrem ao mercado global de carbono. Essa política é bastante estratégica para o Brasil. Pois num mundo onde vamos ser mais cobrados a demonstrar ações de sustentabilidade, já saímos na frente. Nessa última safra de cana, o Brasil conseguiu substituir 46% da gasolina por etanol. Nenhum país no mundo faz isso. O programa que entra em vigor este ano que é o maior de descarbonização do mundo e pode ser replicado e adotado em mais países. O Renovabio trouxe ainda o desmatamento zero. Ou seja, a usinas que aderem ao programa, independente da área de cultivo de cana, se comprometem em não desmatar nada, mesmo que o desmatamento seja legal, previsto no Código Florestal.
AgroSaber – Todas as usinas ligadas à Unica aderiram ao programa?
Gussi – Sim. A Unica possui 150 usinas associadas e todas aderiram ao Renovabio. Todas as usinas estão buscando a certificação. Então assim nós temos um produto que reduz emissões de carbono, que melhora a qualidade do ar e que gera créditos de carbono. Estamos extremamente alinhados quanto a oferta daquilo que o mundo terá como demanda pós-pandemia o que é o chamado o “novo normal”.
AgroSaber – Qual a perspectiva para a safra 2020/2021? A tendência é maior a produção de açúcar do que de etanol?
Gussi – A Unica não divulga números e tendências, mas estamos ouvindo de algumas consultorias de mercado que esta safra seja mais açucareira. Algumas indústrias já vieram a público para dizer que vão atuar no mais no mercado de açúcar. Essa postura é por conta do preço baixo do petróleo que influencia a redução de preço do etanol. Mas creio que, no final, a safra será equilibrada, sendo 50% de açúcar e 50% de etanol, ou seja, ainda vamos ter uma produção de etanol bastante expressiva.
AgroSaber – Qual a importância do açúcar como um dos alimentos mais baratos que existem no mundo numa época dessa de pandemia?
Gussi – O açúcar é uma fonte nutricional e um alimento extremamente importante. Eu diria estratégico, até. É estratégico porque é uma fonte de energia barata para o corpo humano e tem um fluxo logístico muito interessante. É um alimento acessível e que chega a praticamente todos os lugares do mundo. Isso é importante, sobretudo no momento quando os fluxos logísticos nessa pandemia ficam comprometidos. Tem outros produtos que são também são bons à saúde, mas que não conseguem chegar a preços razoáveis como o açúcar. Obviamente é um dos alimentos que compõe a lista de necessidades que o corpo precisa e possui seu patamar de ingestão, como qualquer outro alimento. Assim como é bom comer proteína, mas proteína demais faz mal; beber água faz bem, mas em excesso faz mal; a mesma coisa é para o açúcar. Ele é importante, mas em excesso, também faz mal. Por isso o importante é dosar sempre.
AgroSaber – Quais as oportunidades de novos mercados para o setor?
Gussi – No caso do etanol, antes de novos mercados, a nossa ideia é a criação do mercado internacional, com mais países produtores. Isso dará segurança para o comércio exterior. No caso do açúcar, o que a gente já tem é um mercado global enorme e o que nós precisamos é tirar as proteções que ainda tem no mundo. O açúcar é um dos produtos mais protegidos que existem no mundo. Países ultraliberais ainda mantêm salvaguardas importantes para o açúcar.
AgroSaber – Qual a justificativa para isso?
Gussi – Não há justificativa é só o protecionismo puro e simples, especialmente porque o Brasil é o país mais eficiente na produção dessa commodity no mundo. Eu diria que a ideia de livre mercado existe até virarmos a página do açúcar. A partir da página do açúcar, ninguém mais quer conversar sobre livre mercado.
AgroSaber – Até nosso vizinho, a Argentina, não compra o nosso açúcar. A abertura não foi resolvida?
Gussi – Infelizmente esse problema não foi resolvido. O país ainda mantém barreiras e as compras de açúcar pela Argentina vem de fora do Mercosul. Não é um problema fácil de ser resolvido. Para se ter uma ideia, o Brasil ainda mantém painéis na Organização Mundial de Comércio contra a Índia, a Tailândia e a China. Recentemente a China reduziu suas salvaguardas ao açúcar brasileiro. É um movimento importante e que deve ser aproveitado.
AgroSaber – Quais políticas de ajuda o setor está à espera nesse momento?
Gussi – O setor está à espera de um programa de financiamento para o fluxo de caixa das usinas para dar uma garantia aos estoques uma garantia para o setor evitar o colapso.
AgroSaber – O Renovabio promete virar a página do setor. Como ele foi recebido lá fora?
Gussi – O programa foi muito bem recebido. Temos o exemplo do economista Fatih Birol, especialista em energia e diretor executivo da Agência Internacional de Energia. Ele é um grande entusiasta do programa brasileiro. Ou seja, ele acredita que o mundo possa contar com essa política como uma grande esperança de termos a participação do etanol na matriz energética internacional. Temos alguns países que estão num caminho interessante. Os Estados Unidos já misturam 10% de etanol na gasolina e têm condição de ir para 15%. A França tem implementado bastante a utilização de etanol. Isso é interessante porque cria o benchmark do biocombustível na Europa. Índia, Tailândia e China também têm oportunidades na utilização do etanol em maior escala.
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