“Só com a regularização de terras é que os desmatamentos e incêndios ilegais poderão ser combatidos”
Entrevista com Geraldo de Melo Filho, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
A reforma fundiária divide opiniões em todo o País. Sempre com a missão de combater a desinformação, o AgroSaber entrevistou Geraldo de Melo Filho, 49 anos, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para ajudar a tirar as dúvidas sobre os benefícios que a reforma fundiária pode proporcionar ao Brasil. Formado em economia pela Universidade de Brasília e filho de produtores rurais, Melo Filho comanda o órgão desde 17 de outubro de 2019. Para ele a regularização de terras pretendida pelo Projeto de Lei 2633 garantirá mais produção de alimentos e a proteção ambiental no Brasil. Confira.
AgroSaber – Por que a regularização fundiária é tão difícil de ser devidamente compreendida?
Geraldo de Melo Filho – A questão da regularização fundiária, sobretudo na Amazônia Legal, envolve inúmeros interesses, alguns conflitantes, além, claro, de ser um tema que desperta muitas paixões. Esses ingredientes transformam qualquer debate em polêmica dificultando o entendimento. Muitos já chegam com um juízo de valor formado sobre o assunto e sem disposição para ouvir o outro lado. Dessa forma, a discussão em torno de um tema tão relevante se resume a uma guerra de narrativas. Vence quem convencer maior parcela da opinião pública. Talvez essa seja a causa de tanta dificuldade para que a regularização venha a ser compreendida.
AgroSaber – Por que o PL se faz tão necessário?
Melo Filho – O governo federal e os governos estaduais chegaram à conclusão de que a regularização de terras é uma ação necessária, tanto do ponto de vista ambiental quanto social. Somente por meio dela o poder público terá condições de conhecer os ocupantes das áreas públicas: quem são, quantos são, o que fazem, como vivem, o que produzem e, dessa forma, separar o joio do trigo. Os grileiros devem responder por suas ações perante a Justiça e as pessoas que ocupam essas áreas de boa-fé devem ser regularizadas.
AgroSaber – O que regularização proporcionará aos produtores de boa-fé?
Melo Filho – Por meio da regularização, essas famílias, que hoje vivem à margem da sociedade, terão direito aos benefícios oferecidos aos pequenos produtores rurais, e que hoje elas não acessam. Também é pela regularização que os governos – federal, estaduais e municipais – terão condições de fiscalizar, de forma eficiente e efetiva, o cumprimento da legislação, sobretudo a ambiental, impossível de se fazer da forma como a situação se encontra. Só com a regularização de terras é que os desmatamentos e incêndios ilegais poderão ser combatidos. Essa ação é favorável ao meio ambiente, não contra. E do ponto de vista social, é inegável que a regularização dará melhores condições de vida a essas famílias.
AgroSaber – Um grupo de 43 empresas internacionais, algumas com raiz no agro, em meados de maio deste ano enviaram uma carta aos congressistas brasileiros se posicionando contra a PL 2633. Por que até as companhias com afinidade com o campo estão contra a regularização?
Melo Filho – Talvez por desconhecimento do assunto e sobre o que está sendo proposto ou por pressão dos clientes estrangeiros, que também desconhecem as propostas e os resultados da a regularização de terras. A polêmica que contaminou o debate está atrapalhando esse entendimento.
AgroSaber – Qual o outro lado da história que essas empresas não conhecem?
Melo Filho – Posso afirmar é que a regularização seria extremante benéfica ao País. Primeiramente do ponto de vista ambiental, porque só assim os governos teriam informações corretas sobre quem está lá dentro produzindo e ocupando as áreas de boa-fé e quem está promovendo a grilagem. Depois, pelo lado social, que não está sendo discutido como deveria. Essas famílias vivem na clandestinidade e as dificuldades são inúmeras. Regularizadas, certamente teriam melhores condições de vida. A a regularização de terras tem muitos lados que precisam ser discutidos de forma ampla.
AgroSaber – Recentemente, o governo entregou cerca de mil títulos a produtores rurais. Eles já estavam na fila a quanto tempo?
Melo Filho – Foram 1.060 títulos em 25 assentamentos no Rio Grande do Norte. Esses títulos fazem parte do Programa Nacional de Reforma Agrária, que tem uma legislação diferente da regularização fundiária. Essas famílias estavam esperando há, no mínimo, 10 anos pelo direito a ter a posse definitiva dos seus lotes. Passam da condição de assentados a pequenos produtores rurais.
AgroSaber –. Qual é o quadro de títulos entregues pelo Incra até o momento?
Melo Filho – Em relação a regularização fundiária, desde a publicação da Lei 11.952/2009, que criou o programa Terra Legal, até 2018 foram emitidos 24.440 títulos apenas na Amazônia Legal. O Incra assumiu o programa a partir de 2019. Foram emitidos até o momento mais de 21 mil documentos de titulação em todo País. Já com relação a reforma agrária, no ano passado entregamos 28.221 documentos de titulação. Este ano, mesmo com a pandemia, conseguimos entregar até agosto 19.646 documentos de titulação.
AgroSaber – Qual a diferença entre reforma agrária e regularização fundiária?
Melo Filho – É importante uma breve explicação: reforma agrária e regularização fundiária são situações diferentes, regidas por leis diferentes. A legislação que trata dos assentamentos da reforma agrária é a Lei 8.629, de 1993. E a que trata da regularização fundiária é a Lei 11.952/2009, que pode ser alterada pelo PL caso seja aprovado. Atualmente vivem nos Projetos de Assentamentos da Reforma Agrária 943 mil famílias, distribuídas entre 9.431 assentamentos. Já com relação a regularização fundiária, o Incra identificou em todo país cerca de 457 mil áreas ocupadas em glebas federais. São números altos, mas o de assentados da reforma agrária é maior.
AgroSaber – Como é a vida desses produtores sem titulação atualmente?
Melo Filho – Muito difícil. Eles não têm acesso às políticas públicas como financiamentos para aquisição de equipamentos, insumos e máquinas agrícolas. Também não entram na contabilidade como pequenos produtores, embora em sua grande maioria produzam e vivam como tal. Não possuem infraestrutura logística e nem assistência técnica. Por não serem formalizados, enfrentam todo tipo de dificuldades, inclusive para venda da produção, já que não podem emitir nota fiscal. O rendimento deles é muito baixo. De acordo com dados do IBGE, os ocupantes de áreas com até 500 hectares, quase o dobro dos 4 módulos fiscais (limite de uma pequena propriedade), e que representa a imensa maioria desse contingente, possuem uma renda média mensal de 1,01 salário mínimo.
AgroSaber –Como está a atual fila de requisição por titulação de terras?
Melo Filho – Hoje, existem cerca de 110 mil requerimentos de regularização de terras registrados nos sistemas do Incra. A maioria das propriedades, 88% delas, possuem até 4 módulos fiscais, que, de acordo com a Lei, podem ser regularizadas com a realização do sensoriamento remoto e sem a obrigatoriedade da fiscalização presencial. O foco é priorizar o atendimento nessas áreas. Havendo mudanças na Lei que alterem a abrangência dela, faremos as adequações que forem necessárias.
AgroSaber – Com a regularização, que impacto o senhor vê ao agro brasileiro?
Melo Filho – Acho que o maior impacto será trazer esses pequenos produtores para a formalidade e oferecer-lhes melhores condições para produção como acesso a financiamentos e assistência técnica. Isso é muito positivo para o Brasil em todos os aspectos.
AgroSaber – Como será o passo a passo com a aprovação do PL?
Melo Filho – O processo será feito a partir do que determina a Lei 11.952/2009. Para iniciar um processo de regularização fundiária é necessário a verificação da situação da gleba pública federal. Ela deve estar georreferenciada, certificada, registrada em nome do Incra ou da União. Também é necessário comprovar, entre outras exigências previstas no texto legal: o exercício de ocupação e exploração direta, mansa e pacífica, anterior a 22 de julho de 2008; ser brasileiro nato ou naturalizado; não ser proprietário de imóvel rural em qualquer parte do território nacional; praticar cultura efetiva; não exercer cargo público. Todas essas informações serão checadas por meio do cruzamento dos bancos de dados do governo. Caso todas as informações checadas e as verificações de imagens de satélite comprovarem que a propriedade atende aos critérios exigidos pela legislação a área será regularizada.
AgroSaber – Como o Incra pode ajudar no combate à grilagem de terras?
Melo Filho – O que o Incra pode fazer no processo de regularização é verificar, por meio do uso de tecnologia, com imagens de satélite, aliada à consulta de informações da pessoa em conjunto com o cruzamento das informações geográficas nos bancos de dados de vários órgãos do governo. Além disso o órgão dispõe de informações como posse de outro imóvel, tempo de ocupação da área, indício de fracionamento irregular do lote, embargos ambientais ou outras inconformidades que possam impedir a regularização. Assim, quem não atender aos requisitos da legislação não será regularizado. O marco temporal para a regularização de terras, por exemplo, antes de 22 de julho de 2008, tem como ser verificado tanto pelas imagens de satélites quanto pelo cruzamento de informações junto a outros bancos de dados do governo, como o Censo Agropecuário do IBGE, por exemplo.
E aí, gostou da entrevista? As Páginas Verdes são o mais novo ponto de encontro do AgroSaber com os grandes nomes do agro brasileiro. Nós continuamos com a missão de levar aos leitores informação de qualidade sobre o campo. Sinta-se livre para curtir, comentar e compartilhar em suas redes sociais, inclusive com um novo formato para o WhatsApp (os links estão logo aí abaixo). Siga o AgroSaber em suas redes sociais para receber as novidades do agro.